Jorge Mariano
Ten.EngºQuim.FA
Coimbra
Meu Caro Comandante
Hoje estava num daqueles momentos, muito
comuns nos velhos, em que não estando acordado nem estando a dormir de todo, de
repente começa a desenrolar-se na nossa mente um filme duma etapa da nossa
vida. E desta vez, como em tantas ocorre, o filme passa-se na Guiné em 1971/72.
Não sei se chamaria a este “filme” “A Republica de Coimbra” na Guiné
e o seu Presidente era o Pavia o dono da casa a quem dávamos o nome
acima.
Quem era o Pavia? Tanto quanto a memória
me recorda, o Pavia, era um homem, julgo eu, com uma idade entre os 65 e os 70
anos, à data, agente ou representante exclusivo da Nestle para a Guiné. Tinha
sido funcionário do Instituto Pasteur em Coimbra. Tanto quanto recordo, o
Instituto Pasteur situava-se no inicio da rua Visconde da Luz, do lado direito
quando se desce, para a Praça 8 de Maio. O Pavia era o que se podia chamar na
gíria um coimbrinha. Só o conheci na Guiné, já não recordo pela mão de quem. O
Pavia era um homem extraordinário amigo do seu amigo, com uma personalidade
daquelas que enchem uma casa, um bom contador de estorias, de anedotas, e
“um doente de Coimbra” do seu espirito e das suas gentes. Tinha-se instalado na
Guiné em Bissau já há uns anos, nunca falamos nisso, mas estimo que quando o
conheci, já há uns 15 ou 20 anos. Era o representante da Nestle no território.
O negocio dele consistia em comprar um contentor de leite em pó e farinhas
lateas recebê-lo em Bissau e vendê-lo. Finda a venda do material do contentor o
Pavia regressava a Lisboa. Não estava assim sempre em Bissau, mas passava lá
umas temporadas de um ou dois meses depois regressava e isto duas ou três vezes
por ano. Embora fosse casado deslocava-se sempre sozinho para a Guiné onde
tinha uma casa ali para o lado direito da avenida que desce ou descia do
Palacio do Governador até ao mar. O Pavia tinha muito boas relações com o
pessoal da TAP por isso eles levavam-lhe encomendas que eram quase sempre
especialidades da metrópole como comida confeccionada ou para confeccionar.
Recordo uns grelos de nabo aferventados que lá comi, um coelho á caçadora etc.
A casa dele era conhecida pela Republica de Coimbra na Guiné porque passava por
lá muita gente de Coimbra.
O Pavia não gostava de jantar sozinho
por isso a sua casa estava sempre cheia. Havia uma regra que o Pavia definia logo
á chegada: “as patentes ficam penduradas á entrada da porta com os bivaques e
as boinas, ali dentro todos se tratam por tu”. Era já um homem doente julgo que
teria tido um enfarte.
Na sua casa cantava-se ou ouvia-se fado
de Coimbra, contavam-se estorias convivia-se e matavam-se saudades embrulhadas
em comidas e bebidas de Portugal. Era um amigo preocupado que criava uma rede
das pessoas de Coimbra que estavam pela Guiné e que procurava interessar-se por
todos.
Ouvi-o contar, que o Luis Gois quando
esteve na Guiné, foi anterior ao período que lá estive, cantou, dizia ele,
naquele páteo os melhores fados temperados, certamente, pela saudade e outras
tristezas que nessa ocasião o afligiam.
Quando chegava o contentor a casa do
Pavia tornava-se um supermercado com filas de mulheres no exterior para comprar
as farinhas e os leites. O Pavia, por vezes dava brindes (pratos e copos) a
quem comprasse certa quantidade dos produtos. Recordo, uma tarde, ter estado
com o Coronel do Exercito (falha o nome) já falecido a ajudar o Pavia e a
entregar os tais brindes.
Aconteceu, que nós furamos as regras, e
começamos, a dar brindes ás jovens mães mais bonitas, em vez de usarmos o
critério do Pavia e fomos “despedidos!?” e enviados para o pátio da casa
celebrar facto com um bom Whisky bem fresquinho com gelo e água Perrier…
Quando ocorreu o ataque a Bissau com
misseis vindos do lado do Cumeré estava a jantar em casa do Pavia com o
tal Cor do Exercito cujo nome não recordo.
Era já noite, estávamos ao ar livre no
pátio nas traseiras da casa, quando ouvimos o silvo do míssil a passar por cima
de nós e a cair com estrondo para o lado dos depósitos de combustíveis da
Sacor. Os meus interlocutores incluindo o Coronel disseram são os Fiat’s.
Respondi, não este som não é de avião e também não é normal estes aviões
voarem tão baixos sobre Bissau e de noite!. Entretanto passou outro míssil
sobre nós e na mesma direcção. Parecia que estavam a corrigir as trajectorias .
Abandonei a casa a correr passaram ainda mais um ou 2 misseis peguei no carro
que tinha estacionado em frente e fui até ao café que havia numa praça
próxima, entrei no café e disse militares todos para os quarteis. O que
se faz quando se esta em grande tensão. Não sei se alguém cumpriu a ordem Então
peguei em dois paraquedistas que estavam lá e disse: - vocês vem comigo!
Assim foi, na mais alta velocidade que o
velho Fiat 1100 dava dirigimo-nos para Bissalanca.
Chegados á porta de armas da BA12 estava
lá tante gente que parecia um grande arraial malta perguntava: - Há festa
na cidade? Vimos fogo de artificio!
Respondi: - qual festa foram misseis!
Segui de imediato para a Sala de Comando
na linha da frente.
Quem estava de serviço era um Sarg. Pil
Av que já não recordo o nome e os telefones tocavam todos. O heli-canhão tinha
levantado e perguntava: - para onde vou? Foi informado para ir alto e sobrevoar
os quarteis em torno de Bissau. Penso que terá sido isso que se passou. Pouco
depois chegou o Comandante Moura Pinto.
Voltando ao Pavia sei que morreu pouco
depois de eu ter regressado da Guiné.
Era um homem extraordinário. Aqui fica a
minha homenagem á sua memoria.
Jorge Mariano
TenEngQuimicoFA