Fernando Moutinho
Cap.Pil.Av.
Alhandra
Morreu o comandante Alpoim Calvão.
Soube da sua morte através do António Lobato, o piloto que passou mais de sete
anos preso na Guiné Conakry e que foi libertado na Operação Mar Verde. Facto
que, durante anos, não pôde contar ninguém. Parece-me uma boa altura para
recordar a história do António Lobato, o primeiro piloto português a
despenhar-se na Guiné, e a sua aventura até à libertação. O testemunho dele faz
parte do livro Dias de Coragem e Amizade. A fotografia é do Rafael G. Antunes.
“Disse à minha mulher: não te preocupes que qualquer dia eu volto”
Nunca tinha saído de Portugal. Quando
começaram a pedir voluntários para a Guiné, ofereci-me. Estávamos em 1961.
Cheguei lá a 26 de Julho e não estava à espera do que ia encontrar. Depois de
uma viagem de 11 horas, com paragem em Las Palmas, o avião fez escala em
Bissalanca para me largar e a outro colega, antes de seguir para Cabo Verde. Na
descida comecei a sentir um calor enorme e cheguei a pensar que o avião ia
arder. Mas não. Era do clima. Lá em baixo, o aeroporto era um bocado de asfalto
no meio de capim com dois metros de altura. Estava escuro como breu e, além de
uma casinha com uma suposta torre, não havia mais nada. Nem sequer Meia hora depois de chegarmos lá
apareceu um rapaz, radiotelegrafista, que só lá estava porque de vez em quando
passavam por ali os P2V5 que saiam do Sal. Ele sabia que íamos chegar e foi
buscar-nos num jipe. Apresentou-se e levou-nos para Bissau. Só havia um hotel
na cidade – que estava cheio, tal como todas das pensões porque o pessoal tinha
saído todo do mato e queria ir embora. Acabámos por dormir num colchão no chão
do quarto dele. No outro dia corremos a cidade à procura de outro sítio e não
conseguimos nada.
À hora de almoço sentámo-nos no café
Portugal a beber uma cerveja. Foi a primeira vez que vi uma de litro e meio.
Estávamos a conversar quando um senhor que estava na mesa do lado nos
interrompeu e perguntou se éramos da Força Aérea. “Ouvi a vossa conversa, estão
aflitos? Quando acabarem de beber têm disponibilidade para vir comigo?”
Dissemos que sim, e seguimo-lo em direcção a uma vivenda ao cimo da avenida
principal, onde ele nos explicou: “Sou reitor do liceu, mas vou-me embora para
a semana. Já mandei a família para Portugal.” Deu-nos uma chave a cada um e foi
assim que arranjámos alojamento. Ficámos ali uns dois ou três meses.
Depois fomos apresentar-nos ao palácio
do governo. Como todas as semanas havia um avião para transportar as pessoas
que queriam vir embora e não havia controlo ele pediu-nos para tomar conta dos
embarques. E assim foi. Havia quem nos oferecesse dinheiro para passar à frente
das listas. Recusávamos sempre e no final dos embarques íamos levar um saco
cheio de notas ao palácio. Aquilo funcionou assim.
Passados três ou quatro meses lá
apareceram dois aviões empacotados no porto de Bissau. Como, entretanto, tinham
chegado dois mecânicos, combinámos ir buscar um para o montar só com as
ferramentas que eles tinham na mala. No final, faltava uma chave grande para
colocar a hélice. Fomos às oficinas navais e o mecânico fez-lhes o desenho do que
precisava e eles fizeram uma. Foi assim que começámos a voar para conhecer o
território porque as cartas que tínhamos não tinham cores. Fomos nós que as
colorimos com lápis.
Na época não tinha a noção de que
aquela seria uma guerra prolongada. Começou suavemente e foi aumentando. A 22
de Maio de 1963 saí para uma operação na ilha de Como. Supostamente, nem devia
ter ido. Tinha chegado de Cabo Verde na tarde do dia anterior e entrei na sala
de operações quando estava a haver um briefing. Como faltava um piloto,
ofereci-me para ir no lugar dele. Estava a um mês de acabar a minha comissão.
Ao chegar ao objectivo senti qualquer
coisa no avião. Devo ter sido atingido por uma bala. Disse ao meu asa que ia
sair dali e pedi-lhe que se pusesse debaixo de mim para ver se havia algum dano
na zona do trem de aterragem. Foi o que ele fez. Mas quando temos outro avião
por cima é preciso cuidado para não sermos sugados. Não sei se foi por falta de
experiência, distracção ou apenas por estar a olhar para cima, mas, quando dei
por isso, ele estava a passar-me à frente, encostado ao motor. O avião começou
a tremer e tive de o desligar. Ainda lhe dei dois ou três gritos para que
endireitasse o avião mas ele foi a pique e lá ficou.
Vi uma clareira e não me ejectei.
Achei que era capaz de lá meter o avião. Aquilo era um campo de arroz e ao
aterrar as saliências das metralhadoras e dos rockets encaixaram nos sulcos e
as duas asas saltaram como se fossem arrancadas à mão. A fuselagem deu duas ou
três cambalhotas e saí de lá ileso. Só tinha o relógio esmagado. Olhei à volta
e vi um grupo de indígenas a uns 50 metros a olhar para mim, espantados. Fui
direito a eles. Estavam todos de catanas na mão. Sabia que Catió era numa
determinada direcção e perguntei se algum me podia indicar o caminho que,
quando lá chegasse, até lhes pagava.
No topo da clareira havia uma aldeia
escondida. Caminhámos para lá, a conversar. Mas antes de chegarmos, levei uma
catanada que me abriu a cabeça ao meio. Sem dizerem mais nada caíram todos em
cima de mim. Arranjei forças não sei onde e consegui fugir para o mato. Ainda
estive uns 10 minutos escondido. Atei um lenço à cabeça para tirar o sangue dos
olhos e fiquei à espera. Houve um que apareceu. Ficámos a olhar um para o
outro. Eu pequei na minha faca de mato e levantei-a. Ele disse: “Dá a faca”.
Nestas alturas há alguma coisa que nos diz como devemos decidir. Sei que a
virei e atirei-a. Ele de um grito e lá veio a outra rapaziada toda. Saímos do
meio das lianas e voltaram a dar-me uma série de catanadas, uma delas nas
costas. Ainda estão marcadas. Depois levaram-me para aldeia. Pelo caminho
foram-me tirando a roupa, anéis, o fio que trazia ao pescoço. Estavam a
preparar-se para me linchar quando chegaram dois guerrilheiros. Foi a minha
sorte.
Mandaram-me sentar e perguntaram-me o
que se tinha passado. Depois disseram-me para descansar porque íamos partir à
noite. Antes quiseram saber se tinha fome. Depois mandaram os aldeões subir a
uma mangueira e eles começaram a atirá-las cá para baixo. Nunca comi tantas
mangas na vida. Foram dezenas. Tinha perdido imenso sangue. Logo depois,
adormeci. Só acordei à noite, quando me chamaram. Andámos a pé uma semana até
chegarmos à zona onde estava o Nino Vieira, que era o comandante da zona sul.
Ele disse-me que tinha tido sorte: a ordem do Amilcar Cabral para fazer
prisioneiros só tinha chegado há 15 dias. De qualquer forma tinha poder para me
fazer o que quisesse. Perguntou-me:
- Tens família?
- Tenho.
- Queres escrever-lhe uma carta?
- Para quê? Isto nunca mais lá chega.
- Como quiseres.
Depois tirou um bocado de papel e uma
caneta e deu-mas. A minha mulher tinha vindo para a Guiné em 1962 e resolvi
escrever umas oito linhas a dizer: “Não te preocupes que qualquer dia eu
volto.” E um mês depois ela recebeu-a. Por volta das 22h, um guerrilheiro
entrou-lhe em casa, em Bissau, cansadíssimo. Perguntou-lhe se tinha leite,
bebeu uns dois litros e entregou-lhe a carta.
Nessa altura já devia estar na Guiné
Conakry. Fui num barco que eles apanharam à Casa do Comércio, o Bandim, para
Vitória. Estava lá um curandeiro que decidiu tratar-me. Tirou-me o lenço e
lavou-me a cabeça com álcool ou qualquer coisa parecida porque isto nunca mais
sangrou. Nas costas ainda tinha um golpe aberto por uma catanada. Disse-me:
“Vamos coser isto”. Deitou-me numa marquesa e deu-me uma garrafa de vinho para
custar menos. Bebi. Era bom, português. Ele lá me coseu com uma agulha de coser
sacos. Chega-se a um ponto na dor em que já não se sente nada, passa-se para o outro
lado. O certo é que aquilo resultou. Nem sequer infectou.
Levaram-me para Conakry, onde chegámos
a um domingo. Estava tudo fechado. Passei a noite numa cela imunda do
comissariado da polícia e só no dia seguinte foram buscar-me para responder a
umas perguntas. Queriam que fosse à Rádio Argel dizer que aquela era uma guerra
injusta e não sei que mais. Prometeram-me que ia para um país de Leste e tudo.
Disse que não. Identifiquei-me e pronto. Fiquei ali mais 15 dias até me meterem
num carro e arrancarmos para a prisão de Kindia, 150km para o interior, onde
fiquei os seis anos seguintes.
Estava numa cela de três metros por
dois. Sozinho. Comecei logo a planear uma fuga. Anos depois, graças a um guinês
cheguei a ter três ferros da grade cortados. Ele era funcionário do tesouro
antes da independência e depois continuou nas mesmas funções. Só que em vez de
enviar o dinheiro para contas da Guiné em França, mandava para a dele. Ele
tinha estado no Brasil e falava português. Odiava aquela gente toda. Através da
mulher, que ia visitá-lo de 15 em 15 dias, ofereceu-se para enviar notícias
para cá. Conseguiu passar-me papel e lápis por baixo da porta e eu escrevi. As
cartas iam para uma irmã dele na Guiana Francesa e daí para Portugal. Acabei
por receber um livro que pedi à minha mulher, fiz um código com base nele – uma
página era uma letra – e continuei a mandar informações. A mulher trouxe-me uma
serra de cortar ferro e estive meses a cortar as barras, à noite, até ser
apanhado.
Aquilo tinha 400 prisioneiros de delito
comum, que faziam trabalhos forçados todos os dias. Nunca lá entrou um médico.
Eu era o único branco. Ao fim de dois anos comecei a ir ao recreio por uma
hora, mas sozinho. Nunca me bateram, nem quando me apanharam a tentar fugir.
Insultaram-me e mais nada. Até quando as nossas tropas entraram na Guiné
Conakry foi lá um ministro que mandou abrir a porta, mas só para me insultar. A
certa altura chegou lá um soldado português que, ao fim de um ano e meio e foi
libertado através da Cruz Vermelha. Quando cá chegou disse à minha mulher que
eu nunca mais de lá saía porque dizia que, quando isso acontecesse, os
bombardeava. Não era nada, mas ele disse isso.
Depois chegaram mais dois, que ficaram
comigo um ano. Nos primeiros tempos não podíamos falar. Eles estavam numa cela,
eu na outra. Fazíamos sinais. Quando passaram a deixar-nos ir juntos ao recreio
começámos a planear uma fuga. Isto ao fim de seis anos. Começámos a ver que
havia certas rotinas. Os guardas deixavam a cela aberta para um pátio e à noite
e havia um grupo que ao dar-nos o prato de arroz nem olhavam lá para dentro. Um
dia, não voltámos à cela. Entrámos para dentro de um depósito de água e ficámos
à espera da hora da prece – quando também começava a anoitecer. Nessa altura
saltámos dali para fora e andámos oito dias pelo mato a alimentar-nos de tudo o
que aparecia.
Uma noite, tivemos que andar m bocado
pela estrada porque não tínhamos outra hipótese. Meia dúzia de quilómetros
depois apareceram uns 10 tipos enormes, sem armas, todos vestidos de branco, de
saia até aos pés. Eram Fulas.
- Portuguesi?
- Não
- Ahhh portuguesi. Vamos embora.
- Não, não.
- Ahhh portuguesi, está tudo bem.
Chegámos a uma aldeia e nem se
preocuparam connosco. Foram rezar e as mulheres encheram umas cabaças de arroz
e carne. Chamaram-nos para comer e nós lá fomos. Depois levaram-nos para uma
cidade onde havia polícia. O militar perguntou-nos: “Vocês fugiram, tudo bem, é
esse o dever de um prisioneiro. Não há problema. Mas vão ter de me dizer como
conseguiram.” Respondi-lhe que era “mezinha de branco”. Até hoje não sabem como
escapámos.
Quando chegámos à prisão, tinha o
director na minha cela. Estava ali porque se eu não aparecesse ele tomava o meu
lugar. Era assim. Passados uns dias os homens do PAIGC levaram-nos para
Conakry, onde estavam mais de 20 prisioneiros nossos. Se não tivéssemos tentado
escapar se calhar não tínhamos ido para lá e acabávamos por não ser libertados:
a operação Mar Verde foi nesse ano.
A altas horas da noite começámos a
ouvir tiroteio que se afastava e aproximava. A dada altura caiu uma bujarda em
cima da prisão. Deitei-me encostado à parede até alguém abrir um rombo na
parede e gritar “Lobato”. Era o tenente fuzileiro Cunha e Silva. O instinto
fica tão apurado que parece que vemos e adivinhamos tudo. Perguntou-me pelos
outros que estavam na outra ponta da prisão. Foram buscá-los e continuámos
direito aos barcos.
Quando cheguei a Portugal só pude ver
a família ao fim de oito dias. Fui levado para Caxias e fiquei guardado por
dois pides. Não se podia divulgar que tínhamos estado em território da Guiné
Conakry. Antes de ir à televisão tive de assinar um papel a comprometer-me em
dizer que tínhamos fugido. Os ministros foram ver a gravação e depois de
confirmarem que estava tudo bem é que me deixaram ver a minha mulher. Tinham
passado mais de sete anos.”
Texto: Extraído do livro de Maj.Pil.Av. " Dias de Coragem e Amizade"
Foto;Autoria de Rafael G. Antunes.