segunda-feira, 29 de outubro de 2012

VOO 2543 APELO DAS NOSSAS ENFERMEIRAS





Nuno Almeida “Poeta”
Esp. MMA
Lisboa





Queridos companheiros,

Respondi ao apelo feito no voo 2529 e já enviei a minha contribuição à Rosa Serra.
Se acharem que a sua publicação poderá estimular outros a fazê-lo, aqui segue o descrito:



Queridas companheiras de tempos de dor mas também de alegrias, relato dois episódios que me marcaram muito e que foram vividos com a presença de uma de vós.




A 1ª foi quando da minha primeira saída para uma evacuação.

Aterrámos, saltei com a maca na mão e de imediato me colocaram nela um homem com o ventre todo aberto e a esvair-se em sangue. Colocado no heli a enfermeira começa de imediato a procurar-lhe veias e a injectá-lo, tentando aliviar-lhe as dores e mantê-lo vivo até ao Hospital. Eu via tudo aquilo desenrolar-se perante os meus olhos incrédulos para tanto horror e estupefacção perante a calma, aparentemente serena, com que ela acertava nas veias, apesar da vibração do heli e das convulsões que o ferido exibia.
A determinado momento, o ferido com um rosto que nunca esquecerei, pálido, olhos semicerrados e revirados para cima, aperta na mão uma medalha, que trazia pendurada num fio ao pescoço, com uma foto esmaltada de uma mulher e uma criança, e beija-a dizendo: “ adeus minhas queridas que nunca mais vos vejo”.
Impotente perante a situação curvo-me e toco-lhe no peito dizendo-lhe: “não digas isso que estamos mesmo a chegar ao hospital”. Ele põe a medalha na boca, morde-a e, com as duas mãos agarra-me no pulso, revira os olhos e tomba a cabeça para o lado.
Os últimos minutos, até aterrar no hospital, foram feitos com aquelas mãos fortemente cerradas no meu pulso, eu chorando compulsivamente, e a enfermeira dando conta que todo o seu esforço e luta para roubar aquele homem das garras da morte tinham sido em vão.
Apesar do desfecho infeliz, que certamente a não deixou dormir tranquila naquela noite, tal como a mim, nos dias seguintes lá estava ela a lutar novamente, com toda a sua determinação, para que uma vida fosse salva e fizesse valer a pena todo o esforço e determinação empreendidos.



A 2ª foi numa operação com comandos africanos em Teixeira Pinto.

Transportámos as tropas até uma área determinada no mato e regressámos ao aquartelamento aguardando ordens para mais tarde, após o seu confronto com o inimigo, recolher os elementos transportados.
Estávamos a meio da operação quando recebemos ordens para levantar voo e evacuar um nosso elemento que estaria ferido.
Dirigimo-nos ao local e ao aterrar, quando me preparo para saltar com a maca, vejo um comando africano, alto e esguio no seu camuflado, dirigir-se, pelo seu próprio pé, ao heli, com a sua arma numa mão e um saco de pano na outra, e com aspecto de estar em transe hipnótico.
Abro a porta do heli e desço para o terreno para lhe abrir a porta lateral traseira, mas ele entra e senta-se no meu lugar, com um ar muito hipnótico e a transpirar desalmadamente, e coloca o saco de pano, tipo daqueles de ir ao pão, com atilho na boca do saco, entre a cadeira onde se sentou e a da enfermeira.
Eu, privado do meu assento, entro para a parte de trás e sento-me nos bancos traseiros, frente à enfermeira.
Durante o voo, ela começa a fazer-me sinal que sente um cheiro forte vindo saco e interroga-me, por gestos, se sei o que será. Faço-lhe sinal que não, e ela olha para o comando que continua em estado de transe com o olhar muito distante, mas sem qualquer ferimento aparente.
Passam-se uns minutos e novamente a enfermeira me faz sinal do mau cheiro que vem do saco, e tenta com dois dedos alargar o atilho do saco, sem que o comando se aperceba. Após insistir mais um pouco logra alargar suficientemente a boca do saco e dissimuladamente curva a cabeça para espreitar o seu interior.
Subitamente ouço um grito abafado da parte dela e vejo o seu ar aterrorizado, o que me faz olhar rapidamente para o saco.
A cena é macabra, dentro do saco está a cabeça do inimigo que o comando tinha morto e que, devido à sua religião, a tinha degolado para que o espírito desse homem não o perseguisse no futuro ( ouvi essa explicação já após o entregarmos na enfermaria com febres altíssimas ).
Foi um susto que nos apanhou de surpresa e que não esqueci tão cedo. Para a enfermeira não deve ter sido fácil deparar-se com aquela cena, ainda mais que tinha os dedos a milímetros da cabeça decepada.

Espero que estes dois episódios sirvam para que melhor se compreenda o valor e a coragem das mulheres que tanto fizeram para minimizar o sofrimento de quem na guerra lutou.

Com a minha sincera e estimada consideração

Nuno Almeida “poeta” – 1º cabo MMA – Guiné Jan/Nov 1972


  
Nuno «;o)


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