CHISSOIA
Quando a
luz difusa que anuncia o amanhecer tropical começou a dar cor ao casario da
cidade , havia já na marginal um movimento desusado. Ao fundo da avenida,
frente ao porto, a praça fora engalanada com bandeiras e a tribuna erguida na
véspera, recheada de cadeirões forrados a veludo vermelho, aguardava,
imponente, a chegada das individualidades. Comemorava-se o dez de Junho e
Portugal, de Camões e da raça, e os heróis iam ser solenemente exaltados.
Do
alto do pedestal a estátua do navegador, erguida no centro do largo, olhava a
baía a que os raios do sol nascente douravam já as águas tranquilas, como se
aguardasse ainda a chegada das naus, deslizando suaves e silenciosas, como
cisnes negros de asas brancas.
Nesse
tempo, a população descia dos morros e barrocas sobranceiras á zona ribeirinha,
esperando que os nautas varassem os botes na praia para o encontro dos mundos
que "o mar já unia". Agora, a baía, que se recorta como um
sensual dorso de mulher, foi pudicamente coberta com o manto verde das
palmeiras da marginal, e na comunhão dos mundos só as naus estão ausentes.
Portugal e o mar ali estavam , marcando presença perante uma população que, a
pouco e pouco, tomou a cor da mestiçagem de sangue e vivência, deixando
perplexo, quem se interrogasse, de que raça se iriam enaltecer as virtudes
naquele dia!
A
praça fora enchendo. As cadeiras da tribuna tinham sido ocupadas e um
general, em voz monocórdica e enrouquecida, lia o discurso onde salientava que
quinhentos anos de esforço, e querer, uniam o herói que, ali
imortalizado em pedra, olhava absorto o oceano sem fim, aos heróis de hoje que,
frente á tribuna, aguardavam o agradecimento da Pátria reconhecida.
Perfilado,
com a dignidade de um bem-nascido, altivo no camuflado verde, o Chissoia
aguardou o chamamento e a leitura do louvor em que era descrito o seu acto de
bravura. Subiu os degraus da tribuna e, como se fosse talhado em ébano,
sem mover um músculo, abriu o peito largo onde o general, quase em bicos dos
pés, lhe colocou uma cruz de guerra, dizendo-lhe em voz baixa que Portugal
sentia orgulho por ter filhos como ele. Regressou ao lugar na fila dos
heróis e, erecto, assistiu ao desfile de estandartes dos batalhões espalhados
pelos confins do território, à passagem do corpo de fuzileiros,
do regimento de comandos, dos flechas e dos leões de Cabinda, que em marcha
acelerada entoavam canções guerreiras. A cavalaria fechou o desfile a galope
curto, com garbo e tradição.
Era
impressionante a portugalidade que se respirava e as gentes, de todas as cores,
que tinham emoldurado a praça, ao dispersarem derramavam na cidade a confiança
inabalável no Portugal granítico e multirracial que, naquela manhã, tinha
estado presente naquele largo, frente ao porto.
Quando conheci o Chissoio era ele já um
veterano de guerra, não que fosse velho, pelo contrário, apenas começara cedo e
aprendera depressa. Parece que desde pequeno acompanhava o pai como pisteiro de
elefantes. O Lucusse, onde nascera, era uma zona de passagem dos
paquidermes que, nos seus itinerários até ao rio Lungué-bungo, muitas vezes
destruíam o trabalho de meses no arranjo das lavras. Entre os animais e os
aldeões travava-se uma luta pela sobrevivência, em que nem sempre eram os
humanos os vencedores. Era assim natural que os caçadores , convidados pelo
governador do distrito ou pelos homens importantes da província, fossem vistos
com agrado pelas populações, pois além de abaterem alguns animais, afugentando
por algum tempo as manadas, deixavam toneladas de carne que, mesmo dura e
fibrosa, o soba e o velho Chissoia ficavam encarregados de distribuir. Aos
brancos só os dentes interessavam, e o velho pisteiro aguardava que os crânios
enterrados apodrecessem para lhes retirar as presas que, numa próxima visita,
entregava já limpas de medula.
Foi nessa
época que os Chissoias, pai e filho, se tornaram amigos de gente importante. O
profundo conhecimento das matas e a perícia em seguir e interpretar trilhos
como quem lê um livro, aliados à camaradagem que a aventura comum proporciona,
permitiu-lhes sentarem-se, conversar e comer lado a lado com os grandes da
terra que, amiúde, os presenteavam como prova de reconhecimento. O prestígio do
velho Chissoia era grande perante as populações, não só dos povoados próximos,
como de toda a região.
Corriam tranquílos os primeiros anos da década de sessenta. A luta que se
ateara no norte do território não tinha chegado ainda às planícies sem fim do
leste. As matas eram seguras e, logo pela manhã, as mulheres seguiam em fila e
sem receios, para as lavras onde recolhiam lenha e mandioca para o sustento da
prole.
Uma madrugada apareceu no Lucusse um grupo de gente estranha à região. Vinha
armada e queria falar com o soba. Depois de uma longa conversa, e perante a
atitude de incompreensão e até de alguma hostilidade, o chefe do grupo resolveu
utilizar um meio de persuasão mais eficaz e, perante a população aterrorizada,
fuzilou o soba por ser um chefe corrupto e o velho Chissoia por ser lacaio dos
colonialistas. O filho fugiu para a mata e, passados dias, chegou à capital do
distrito, onde contou o sucedido. Acompanhou depois a força militar que foi
enviada para a zona e seguiu, até ao fim, a pista de rastos humanos como o pai
lhe ensinara a seguir a dos elefantes.
A
partir dessa época ficou ligado ao destacamento militar que foi aquartelado na
povoação. O seu conselho e actuação foram sendo cada vez mais imprescindíveis,
acabando por ser integrado nas forças irregulares, chefiando um grupo de homens
escolhidos por si e com relativa autonomia.
Quando a luta de defesa do território foi alargada ao leste para suster a
tentativa do inimigo de alcançar o planalto central por essa via, a táctica das
nossas forças teve que se adaptar ao terreno plano e com grandes extensões
pouco povoadas. A Força Aérea iniciou então uma colaboração íntima nas
operações terrestres, proporcionando uma maior mobilidade através de
helicópteros e aviões ligeiros. Foi nessa época que conheci o Chissoia, e
muitas horas passadas em amena conversa, junto das fogueiras que aqueciam
as noites frias das savanas de leste, caldearam a amizade e a admiração
que desde então sentia por ele.
Uma tarde, quando o crepúsculo já
anunciava a noite que cairia breve, perto do lago Dilolo, quando o seu grupo
dava protecção a um movimento das nossas tropas, houve uma emboscada e dois
soldados feridos jaziam no chão dentro do campo de tiro do inimigo, que
continuava a alvejá-los. Passado o primeiro momento de surpresa, o Chissoia
levantou-se e, a descoberto, com a arma ao quadril, fazendo fogo para se
proteger, foi buscar um e, depois, o outro, arrastando-os para lugar mais
seguro.
Foi por esse acto de bravura que o
Chissoia esteve presente naquele dez de Junho, em que o general se esticou para
lhe pendurar a condecoração na farda honrada e que, passados tantos anos,
algures num recanto de Portugal, dois homens de meia idade podem recordar, em
reuniões de família, como uma vez, quando estavam no Ultramar, um preto lhes
salvou a vida.
O ano de setenta e quatro decorreu convulso! A esperança inicial,
transmitida pelos novos políticos no poder, em vez de tranquilizadora e
bem colocada, parecendo ter a percepção da complexidade dos problemas a
enfentar, fora substituída por dúvidas cada vez mais angustiantes. As cidades
tinham acolhido com palmas os guerrilheiros vindos das matas, aplaudindo-os
como actores inesperados, num final de acto antecipado e improvisado, mas antes
do fim do ano muitas das mais importantes povoações eram já palco de lutas
entre os diversos movimentos , com recurso a armas pesadas, que destruiam tudo
o que fora construído com sacrifício e amor.
As Forças Armadas portuguesas, desviadas dos seus objectivos e da sua missão,
assistiam a tudo como espectadoras, ocupando, salvo raras excepções, um lugar
pouco digno.
A partir do meio do ano setenta e quatro, começaram a chegar a Lisboa os
soldados do fim da era imperial. Traziam estampada no rosto, na farda e na
mente, a parte negativa da revolução.
A
população civil começara há muito a sair face à insegurança em que se passou a
viver , e muitos de nós, militares, habitávamos as casas vazias onde tínhamos
vivido com as famílias, aguardando o fim da missão.
Uma noite ouvi um bater tímido de palmas
no quintal da casa que ainda ocupava. Quando abri a porta, o Chissoia e a
família estavam à minha frente.
"Preciso de ajuda!" atirou, quase envergonhado.
"Entrem
e sentem-se por aí", disse, apontando os caixotes onde embalava o que
queria levar de regresso a Lisboa. "Cadeiras já não há!", conclui.
A mulher e os filhos acocoraram-se, silenciosos, junto à parede da sala. Eu e
ele sentámo-nos frente as frente, como sempre tínhamos feito, cada um em seu
caixote.
"Estamos
abandonados!", começou "Três dos meus homens foram detidos
por um dos movimentos de libertação, e foram mortos..."
"Não
pode ser", interrompi "Vocês terão que ser protegidos nos
acordos que se fizeram" afirmei, procurando eu próprio dar convicção
ao que dizia.
"As
patrulhas deles procuram-nos sem que alguém nos dê protecção!..."
"Isso
não faz sentido! A responsabilidade aqui ainda é nossa... o comandante do
batalhão é a autoridade!", exclamei indignado.
"Fui
ao comando militar hoje à tarde. Um tenente de barbas, que parece ter chegado
há pouco tempo, disse-me uma coisa que me deixou sem dúvidas..."
"O
que foi?", perguntei.
"Quando
soube o meu nome, perguntou o que é que eu esperava que acontecesse aos lacaios
e traidores do povo...". As lágrimas dançavam-lhe nos olhos sem cair,
como se a raiva e o orgulho as segurassem. "Isso foi o que disseram
ao meu pai em Lucusse antes de o fuzilarem...", e num desabafo
murmurou "Só que esses eram negros... um tenente branco não me pode
dizer isso... porque aqui o traidor é ele... eu fui condecorado, o general
disse-me que tinha orgulho de mim, de um português como eu... quando esse homem
souber o que me disseram..."
Olhei-o cheio de amargura, sem ter a coragem de lhe dizer que esse general
assumira agora outras funções e que ele, Chissoia, era uma ligeira sombra na
sua memória, nas suas preocupações... talvez na sua consciência.
Desceu
sobre nós um silêncio pesado e trágico. Olhávamo-nos mudos. Os caixotes em que
nos sentávamos e a casa vazia que nos albergava pareciam ser tudo o que restava
do mundo em que até aí tinhamos vivido.
Subitamente, a filha mais nova, com os
cinco anos a reluzirem-lhe na face risonha, levantou-se e, sem quebrar o
silêncio, foi apanhar do chão uma boneca de cabelos loiros que uma das minhas
filhas tinha deixado para ser enviada nos caixotes. Voltou a acocorar-se junto
à mãe com a boneca nos braços, cantando-lhe baixinho uma canção de embalar, que
certamente aprendera com as mães negras do bairro onde vivia.
A pouco e pouco a força telúrica da melodia, quase murmurada, foi aquecendo o
silêncio, enchendo-o da energia profunda da África eterna, renascida das
cinzas, verdejante depois das queimadas. A alma foi-se-nos erguendo como se a
canção fosse um hino que nos devolvia o ânimo e, em silêncio, ambos
procurávamos já a solução que todos os problemas têm.
"Eu
posso arranjar passagens para Luanda no avião de amanhã" alvitrei,
buscando
saída.
"Luanda
não é o meu povo. Só lá fui uma vez..." referia-se à data da
condecoração "Lá ficamos ainda mais desprotegidos".
"Posso
tentar que vão para Portugal, mas, pelo que sei, não vai ser fácil nem
rápido", disse, recordando as notícias que nos chegavam pelas
tripulações.
"O
mais dificil é sair daqui com a família. Com eles não consigo passar sem ser
visto".
"Mas
sair para onde?", perguntei, sem vislumbrar a solução.
"Tenho gente na mata, que me mandou recado. Há movimentos que não se
importam de nos aceitar. Precisam de homens com experiência para as guerras que
vão chegar."
"Que
posso fazer?", interroguei com desalento, pensando no papel que
teríamos ainda que representar na tragédia que se vislumbrava já no horizonte.
"Aquela
pista que uma vez abrimos para utilizar só em operações especiais, continua boa
e abandonada...", sugeriu a medo, consciente do que pedia "Podemos
ser postos lá?..."
Eu tinha presente a localização da pista. Fora aberta na orla de uma mata,
longe de povoações, apenas para ser utilizada em operações que se desenrolassem
perto da fronteira.
"Já
mandei os meus homens sair da cidade, só ficaram duas mulheres, eu e a minha
família; se nos puder ajudar..."
Sabia o risco que corria ao dizer-lhe que sim. A zona já fora evacuada pela
nossa tropa e, ainda que isolada, poderia andar perto algum grupo que não
hesitaria em abrir fogo se nos visse aterrar.
Pela minha memória passou aquela madrugada em que tinham chegado ao acampamento
os dois soldados feridos, mas salvos pelo Chissoia.
O Portugal que eu era devia um sacrifício, um acto de gratidão, ao Portugal que
ele, Chissoia, deixara já de ser.
Dormiram essa noite na minha casa depois
de ter ido buscar, furtivamente, as duas mulheres e mais duas crianças,
evitando as patrulhas que circulavam pelas ruas desertas da cidade. De
manhã, muito cedo, meti-os no jeep que ainda me estava distribuído, e dirigi-me
à base onde tinha o avião para regressar a Luanda logo que a minha missão ali
estivesse cumprida.
Desloquei e tomei o rumo da pista que nos aguardava na mata. Daí ao Lucusse
seriam uns dias de caminho árduo, mas era preferível percorrê-lo a serem
abatidos como traidores.
A faixa deserta estava mergulhada no silêncio hostil das coisas
abandonadas. Tudo estava agora vazio, dominado pela mata que parecia
querer recuperar para si a pista, como cicatrizando uma ferida aberta. Aterrei
e, para não parar o motor, mantinha-o a baixas rotações. O hélice provocava um
som triste de chicotadas que, repercutindo-se de árvora em árvore, ia morrer
nos confins da floresta.
O Chissoia ajudou a família a descer rapidamente do avião, conhecendo
perfeitamente o perigo que todos corríamos se, por acaso, um grupo dos novos
senhores da guerra nos surpreendesse. Ao sair colocou-me, num gesto mudo, a mão
sobre o ombro, dizendo assim tudo o que nem eu nem ele tínhamos coragem para
dizer. Depois, caminhou apressado à frente do seu pessoal em direcção à mata.
As mulheres e os filhos seguiam-no em fila indiana. Não teve mais um olhar,
mantinha o porte altivo e digno que sempre lhe conheci. Um a um, vi-os
desaparecer entre as árvores, como se a floresta os engulisse. Só a mais
pequena, a última da fila, se deteve um instante e, voltando-se, com a boneca
de cabelos loiros na mão, fez-me adeus e sorriu, num gesto puro de quem não
sabe que se despede para sempre.
Fiquei a olhar o sítio onde desapareceram, aguentando a solidão imensa que me
gelava a alma. Quantas traições, quantos abandonos e deslealdades serão
necessários para erguer e desfazer um Império? Em quantas praias desertas
teremos deixado companheiros? Em quantas matas teremos abandonado gente que em
nós confiou? Quantas vezes desertámos das responsabilidades que assumimos?
Quantas vezes traímos?
Desloquei e, já no ar, dei por mim a
pedir a Deus protecção para o camarada perdido.
No dia seguinte, o mecânico que passou inspecção ao avião, entregou-me uma
medalha de Cruz de Guerra que encontrou caída no chão, junto ao banco em que o
Chissoia se sentara.
VB:É por estas e outras que nos orgulhamos
de sermos da FORÇA AÉREA!