quinta-feira, 29 de julho de 2010

VOO 1858 HISTÓRIAS VIVIDAS - A MISSÃO QUE NÃO CUMPRI - PARTE III

Foto: Mr. Pierre Fargeas (direitos reservados).

Histórias vividas

A Missão que não cumpri...!

A todos os mecânicos especialistas
que em África serviram
voando ALIII!
Poucos mecânicos de voo foram reconhecidos publicamente pelo seu espírito de missão, sacrifício e coragem demonstrados em combate! Esta singela homenagem que lhes presto, na pessoa do meu mecânico de voo, pretende colmatar essa lacuna na parte que a mim diz respeito. De facto o protagonista deste episódio representa bem tudo o que essa classe de especialistas tinha e mostrou de bom!
Formiga

(Continuação do VOO 1855)

Para dificultar as coisas, não tinha comunicações com o destacamento – Gago Coutinho não dispunha de facilidades aeronáuticas para além da pista – que me permitissem pedir alguma antecipação na preparação da missão. Em vão chamei pelo Renato e o Estima, para a eventualidade de se encontrarem a voar! Mas não estavam!
Tinha que esperar pela minha aterragem! Por outro lado talvez fosse melhor assim pois não provocaria a curiosidade do pessoal da unidade!
Iríamos ver que rumo as coisas tomariam após a aterragem. Era mais uma missão que chegava, facto que não constituiria novidade no Batalhão. Esperariam que eu chegasse à sala de operações para elaborar o meu relatório e o mecânico trataria do resto. Não tinha qualquer dúvida de que se iria passar assim.
Pelo caminho constatei o cuidado com que mecânico tratava aquela jovem que minutos antes tinha ferido tão gravemente. Da parte dela apenas um olhar sereno de quem não compreendia o que lhe estava a acontecer.
Imaginei para ela, o diálogo que ela estaria a travar consigo própria.
“Afinal ela não estava ali porque o “mais velho” lhe tinha determinado cozinhar para uns quantos camaradas que haviam de passar por ali naquela hora das vinte!?
E que culpa tinha o seu filho das “macas” dos homens. Foi pena ter deixado as “inbambas” (objectos pessoais) lá no mato.
Talvez as recuperasse quando voltasse, mas não imaginava bem quando seria! “

Ai estava eu de novo a fazer romance!

A aproximação à pista fez-me deixar para trás estes pensamentos que me incomodavam! Era sinal de consciência pouco tranquila. Iria tomar banho. Talvez lavasse!
Aterrados e parqueados,... ninguém por ali como previ! Tanto melhor!
Foto: Mr. Pierre Fargeas (direitos reservados).

O mecânico ao contrário do que era norma desapareceu deixando-nos aos três dentro do heli.
Por sua vez pus-me a preencher o livro do helicóptero (coisa que raramente fazia deixando essa tarefa para o mecânico de voo), enquanto aguardava o desenrolar dos acontecimentos. Podia acontecer que o mecânico precisasse de mim ali por perto!
Tomou a iniciativa de ir convencer o piloto do DO27 a efectuar a evacuação, o que a acontecer, iria ser feita de noite.
Não assisti, mas soube mais tarde que houve alguma tensão entre os dois, para que a missão se fizesse. Não sei que argumentos usou, mas foram eficazes.
A evacuação foi feita!

Regressaram aos primeiros alvores do dia seguinte e aterraram numa aproximação directa à pista para não dar azo a perguntas.
E quando o encontrei, já barbeado e em fato de voo camuflado, exibia um ar sério e grave, transmitindo a satisfação de dever cumprido! Tenho a certeza que não tinha dormido!
Cumprimentei-o com o tradicional bom dia ”Luena”.
- “Môio”!
- Môio óbi! Foi a resposta.
E prossegui:
- Com que então o Sr. C-----. esta noite foi “prás gajas”!
Nenhum de nós queria falar do acontecido e esta abordagem servia às mil maravilhas para o efeito!
Falava-se sem dizer muito! Dava para nos entendermos.
- Lá teve que ser Sr. Alferes!....
E perfilando-se num rigoroso “sentido” acrescentou:
- Mas “pronto para operações”!
Ele sabia que com esta minha observação, não referindo directamente o assunto, lhe estava a transmitir a minha concordância para a sua atitude de querer acompanhar a evacuação.
Mas sabia mais! Sabia que lhe estava a dar um louvor pessoal, pois esse é que era importante para ambos.
Também não precisava de lhe perguntar como estava a mulher! Isso seria trazer à memória algo que não queríamos lembrar. Sabíamos porém que ficara o melhor possível a partir do momento que ficou entregue aos cuidados do incansável pessoal médico e paramédico dos nossos hospitais de campanha!
O mesmo já não poderia garantir se ela tivesse ficado em Gago Coutinho onde iria ser submetida a um interrogatório e onde não teria os mesmos cuidados médicos que no Luso.
Daí a pressa em fazê-la sair dali. Nunca soubemos o que foi o futuro daquela mãe e filho. Tínhamos tentado compensar um mal que não quiséramos fazer e com o qual não contáramos.
Fui à procura de guerrilheiros armados e saiu-me do nada, o que a natureza humana tem de mais sensível e belo: uma jovem mãe e o seu filho!
Estas eram as contradições que se viviam num conflito no qual, onde a par da violência desencadeada a cada momento, surgia também uma faceta na qual tudo se tentava para minimizar a dor de quem sofria.
E que bem se comportou este guerreiro, habitualmente frio, que era o meu mecânico.
Na FA a prontidão das tripulações foi sempre grande, mas nas evacuações sanitárias era ponto de honra! A disponibilidade era total! Tudo se interrompia para dar lugar à execução da missão! Face a um pedido de evacuação de feridos em combate a refeição era de imediato posta de lado!
O raciocínio de cada um dos envolvidos na missão era o lógico:
Aprontar o que lhe competia porque os outros já estavam a fazer a sua parte!
Pilotos, mecânicos, médicos, enfermeiros, controladores e demais pessoal envolvido no apoio à missão tinham este procedimento!
Todos sentimos um enorme orgulho de ter feito parte dessa geração!

Deste episódio e em jeito de conclusão;
Para os arquivos da guerra, esta missão de reconhecimento foi de facto efectuada…
No relatório de missão ficou registado:
Efectuado reconhecimento na área determinada.
Não foi detectado qualquer grupo ou vestígios da sua passagem!

E era verdade!
O oficial de operações do Batalhão não perguntou nada!
E eu, apenas tinha “esquecido” aquela parte da missão atribuída, que rezava:
“… captura na área, de elemento que possa fornecer informações sobre o referido grupo”.

Porque estava convicto que aquela mulher e o seu filho nada sabiam de relevante que pudesse interessar para a conduta da guerra!

24 de Abril de 2010
Formiga
PS. Este mecânico MMA, tinha um apelido pouco vulgar e glozava sempre que o seu nome vinha a terreiro. E se lhe perguntavam o nome dizia de forma pomposa que era......,sim, mas o unico autorizada na Força Aérea
Voos de Ligação:
JS: E aqui termina a publicação desta história que homenageia os Especialistas da FAP. Em nome da Linha da Frente, agradecemos ao seu autor ter decidido fazê-lo publicamente e ao Miguel Parada por a ter partilhado connosco.
Mantemos o desafio ao Especialista aqui mencionado para que se apresente à Linha da Frente.