terça-feira, 27 de julho de 2010

VOO 1855 HISTÓRIAS VIVIDAS - A MISSÃO QUE NÃO CUMPRI - PARTE II

Foto: Mr. Pierre Fargeas (direitos reservados).


Histórias vividas

A Missão que não cumpri...!



A todos os mecânicos especialistas
que em África serviram
voando ALIII!


Poucos mecânicos de voo foram reconhecidos publicamente pelo seu espírito de missão, sacrifício e coragem demonstrados em combate! Esta singela homenagem que lhes presto, na pessoa do meu mecânico de voo, pretende colmatar essa lacuna na parte que a mim diz respeito. De facto o protagonista deste episódio representa bem tudo o que essa classe de especialistas tinha e mostrou de bom!
Formiga
(Continuação do VOO 1852)

O meu mecânico de voo.
Quando em operações, o MMA era também electricista, mecânico de rádio ou atirador e o desta missão era bem conhecido pela frieza com que encarava as missões de fogo. Disparava à ordem ou pedia autorização para o fazer para que tudo fosse muito coordenado; e a sua precisão de atirador era impressionante. Era o resultado da já longa comissão de serviço e do muito tempo em acção.


Imperturbável, dava a confiança necessária a quem, pilotando um ALIII numa missão de fogo, apenas podia operar a “máquina”. A equipa que tinha que estar muito bem “oleada”!
O voo decorria algo monótono, já que o terreno era muito aberto, com excepção dos já referidos tufos de arvoredo que poderiam constituir um excelente local de refúgio, para um pequeno grupo armado que por ali se encontrasse e não quisesse manifestar-se.
De repente quebrou-se o silêncio e em simultâneo “saiu” pela interfonia:
- Fumo “às 11 horas”!
- Fumo à frente, diz o mecânico!

Usa-se, para mostrar a outrem sem perda de tempo a direcção de algo que se queria indicar, o sistema do mostrador do relógio. Para isso, imaginando-nos no seu centro e convencionamos que a direcção do voo é direcção das 12 horas. Informamos então quem necessita saber, que esse algo que se avistou, está às 9 horas (de lado, à nossa esquerda), às 11 h (ainda à esquerda mas num sector frontal) às 2 h (à frente e direita) ou às 4 h, (à direita mas já ligeiramente para trás).

Foto: Mr. Pierre Fargeas (direitos reservados).

A cerca de duas milhas vimos começar a sair da copa das árvores de um desses tufos uma pequena coluna de fumo, não muito denso, resultante sem dúvida do apagar repentino de uma fogueira. Era indubitável que havia ali alguém que ouviu o helicóptero mas que não estava interessado em se deixar localizar. Mas cometeu um erro. Ao apagar a fogueira provocou mais fumo do que se a tivesse mantido acesa. Poderia acontecer até que nos tivesse passado desapercebida.

Recentemente (2002) em conversa com um ex-combatente moçambicano foi-me dito que das muitas dificuldades que um guerrilheiro tinha que enfrentar no terreno, uma das maior era o problema da confecção da alimentação. O fumo de dia e o brilho das chamas à noite eram a grande preocupação, para não serem localizados pela Força Aérea.
Confesso que nunca tinha pensado no assunto sob o seu ponto de vista.

Voámos em direcção ao fumo e no capim ligeiramente amassado, (muda de tonalidade) distinguia-se um trilho pouco marcado que levava em direcção ao arvoredo, o que significava que se tratava de nâo mais que uma ou duas pessoas, que não habitava ali em permanência e tinha sido o resultado de recente acesso ao local. Era assim pouco provável que se tratasse do grupo, mas tendo em consideração credibilidade da informação, a aproximação àquele local passava a ser perigosa pelo que tinha que se revestir de toda a a precaução. Isto porque no reconhecimento visual em zonas arborizadas, a vantagem pertence a quem está no solo, já que pode ver sem ser visto e um simples tiro de arma ligeira pode abater o helicóptero. Quem quer que ali estivesse, já nos tinha ouvido e estava de sobreaviso. Havia que não ser apanhado de surpresa pelo fogo adversário. Decidi por isso passar em velocidade, fazendo fogo para o local. Numa segunda passagem, se não tivesse havido reacção, passaria em voo lento para tentar ver por baixo da copa das árvores.
E foi assim que, depois de algumas rajadas de G-3, regressando à vertical avistámos alguém saindo a rastejar da mata e evidentemente ferido. Pela vestimenta era uma mulher.
Sem qualquer palavra entre nós, e sem pensar em consequências, decidi aterrar. Fiz estacionário o mais perto possível dela e aterrei “apalpando” o terreno por baixo do capim.
Foto: Mr. Pierre Fargeas (direitos reservados).

De pronto o mecânico saltou, desarmado, e correu ao seu encontro. Senti uma vibração no rotor de cauda e depreendi que estava a cortar capim. Sorte! Nem sequer pensei no acidente que poderia ter ocorrido na precipitação da aproximação, mas felizmente não havia qualquer obstáculo escondido.
Regressou com uma jovem mulher ao colo, ferida, pernas bamboleantes agarrando um filho de meses contra o peito.
A imagem ainda hoje me choca. Com tristeza e desânimoa invadir-me um nó na garganta decidi “abortar”aquela missão.
Merda da missão! Não estava preparado para esta situação.
Olhei para trás antes de descolar para me certificar do que se passava. Porta traseira aberta, uma perna de fora, o mecânico sentava-se no estrado do heli cobrindo-lhe as pernas com a própria capulana, pano com que as mulheres africanas se cobrem e lhes serve simultaneamente de blusa e saia. Usam normalmente uma segunda, com que amarram o filho às costas enquanto trabalham ou caminham.
A sua posição não era segura mas compreendi que estava a tentar proporcionar-lhe o conforto possível na ocasião: o seu abraço seguro e sentando-a entre as suas pernas!
Os ferimentos da mulher eram graves, a avaliar pela mancha de sangue na sua capulana com que lhe envolveu as pernas deixando-a com um tronco desnudado.
Quando a encarei, muito jovem, o seu rosto não deixava transparecer o mais leve esgar de dor como seria espectável. Estava calma a contrastar com a impaciência manifestada por nós ambos.
Segurava contra o peito desnudado o filho com uns olhos negros, redondos, voltados para mim e que me transportaram dali para Luanda e para a minha filha da mesma idade.
Se alguma dúvida pudesse subsistir em mim quanto à continuidade da missão, aquele olhar dissipou-a de imediato.
Decidi regressar. Aquela cena perturbava-me. Sentia dificuldade em controlar as emoções! Inspirava rápida e repetidamente tentando evitar exteriorizar perante o meu mecânico algo que não gostaria de transmitir.
Puta de vida!

Fiz-lhe sinal de polegar erguido. Respondeu de igual modo. Estava pronto! Descolei rumo directo a Gago Coutinho!
E vociferando palavrões que só eu ouvia ia dando palmadas na coxa esquerda, sintoma de que algo não me corria bem! Pensava em muita coisa e também na elaboração do relatório da missão. Onde não podia constar esta cena. Era necessário fazer algo por estes dois seres. Alguma coisa havia de me ocorrer.
Por gestos, pois continuava com a ficha do capacete de voo desligada, o mecânico pedia para que apressasse o regresso apontando-me para as pernas feridas da mulher e fazendo-me entender que era preciso, após chegada a Gago Coutinho, proceder a uma evacuação para o Luso.
Aí estava a solução para a minha preocupação!
Evacuar aquela mulher era poupá-la a um interrogatorio logo a aterragem.
Porém era o entardecer e em breve seria noite. Iria ser difícil convencer o piloto do DO-27 a fazer a evacuação! As evacuações nocturnas não eram permitidas no tipo de aeronaves disponíveis no destacamento, se bem que no Leste fosse tecnicamente fazível. Não havia obstáculos significativos e a identificação das poucas localidades com iluminação era facil. Em último caso seria uma decisão que só o piloto poderia tomar mas sempre sujeito a eventual sanção disciplinar, se bem que pouco provável.

(Continua)

Voos de Ligação:
VOO 1852 HISTÓRIAS VIVIDAS - A MISSÃO QUE NÃO CUMPRI - PARTE I
VOO 1851 PEDIDO DE DIVULGAÇÃO