quarta-feira, 13 de maio de 2009

VOO 978 A ENFERMEIRA QUE VINHA DO CÉU - PARTE TRÊS.




Manuel Bastos
ex-Fur Mil Op Esp Exército Moçambique
Coimbra


Para quem só agora está a chegar a esta Linha da Frente, uma pequena nota introdutória para referir que este belo texto do Manuel Bastos, como aliás o próprio nome indica, é um novo capítulo da série “A Enfermeira Que Vinha Do Céu” e que aqui tem vindo a ser publicada.


Bom dia amigo Barata!

Mais uma vez te agradeço o teu “trabalho de sapa” para encontrares a enfermeira que vinha do céu… Já nos encontrámos como sabes. Foi uma experiência muito gratificante por vários motivos, o principal dos quais é sempre o afecto humano, se é que há outro afecto além do humano, mas não é menos emotivo tu teres tido o dom de transformares numa pessoa real quem já era uma personagem da minha imaginação, mais da imaginação do que das memórias, acho eu, porque com o tempo tudo se mistura. Sabes que Saramago chorou quando viu materializada no corpo de uma actriz a sua personagem feminina do “Ensaio sobre a Cegueira”? Agora imagina que não era uma actriz mas a mulher verdadeira, e ele descobria que tudo o que imaginou eram memórias suas e não apenas ficção?
Afinal eram memórias, afinal houve mesmo uma guerra, e houve mulheres corajosas que nos salvaram a vida, mas que fizeram mais, muito mais do que isso: no momento em que estamos abatidos ao efectivo, reduzidos e excrescências da guerra, a simples dejectos; só a sua presença já fazia despertar em nós o amor-próprio, a auto-estima, e parece, até o senso de humor… mas isso fica para uma próxima oportunidade, para um novo episódio desta novela, que vai aqui no seu terceiro capítulo, escrito exactamente momentos antes de me encontrar com a Piedade.
Anexo esse “episódio” com fotos e tudo, e vou renovar a marcação da minha presença no convívio dado que não vejo o meu nome na lista.

Um abraço

Manuel Bastos



A Enfermeira que Vinha do Céu – Parte Três

Se o comboio avança em direcção à Gare do Oriente porque me dá a ideia que recuo no tempo? Daqui a pouco uma mulher por entre a multidão avançará para mim empunhando a boina verde de uma farda há muito desmobilizada, distintivo, noutro tempo, de uma tropa de elite, identificação hoje para um encontro agendado.
Todo o encontro cria uma ruptura. O que era até ali deixará de o ser como era. Passamos às vezes por uma pessoa na rua e tudo muda na nossa vida. Alguém que nos diz bom-dia de uma forma diferente, ou nos dá um sorriso, ou nos olha com um brilho de inteligência no olhar e nos garante que o Universo é habitado. Nunca agradecemos a uma pessoa assim que muda a nossa vida. Ela esfuma-se no tempo. Afunda-se na vida. Perde-se no labirinto do mundo.
Se voltamos a passar por ela nem a reconheceremos. Ela apenas passou por nós, porém ao passar por nós fez-nos desviar a atenção, iluminou com um relance do seu olhar um pensamento sombrio, e esse seu pequeno impacto fez-nos atrasar o minuto fatal em que iríamos cometer um erro irremissível, desviou a nossa trajectória o suficiente para salvar o nosso dia.
E se uma pessoa assim tiver interferido na trajectória da nossa vida de uma forma consciente e calculada por ter imposto a si mesma esse dever, quando tudo o mais à sua volta se resumia à primária luta da sobrevivência? Uma pessoa cujo impacto na nossa vida nos desviou da trajectória da própria Morte.
Eu daqui a pouco a descer pelas escadas rolantes, e o ribombar dos comboios por cima de mim. E a ideia que recuo no tempo. E a certeza que vou encontrar no piso inferior uma longa fila de veículos militares.



Legenda: Momento em que eu,evacuado da zona onde fui atingido,chegava ao Hospital de Mueda acompanhado pela Enfª Piedade
Fotos: especialistasdaba12 (enviada por Manuel Bastos)

E eu, eu fora de mim, imaginando-me no lugar do piloto do helicóptero a calcular o espaço entre os ramos das árvores para aterrar na picada, e a ver um soldado prostrado com as marcas da explosão a irradiar do seu corpo. Eu agora a olhar para cima com os olhos do enfermeiro Costa. Corajosamente desarmado, segurando o saco do soro e olhando para o céu em busca do socorro. Eu agora envergando a T-shirt branca e sentindo o coração ansioso da enfermeira no meu peito. Eu ansioso por chegar, ansioso por me antecipar à Morte.
Eu agora no meu próprio corpo, deitado de costas no chão a ver chegar a enfermeira de T-shirt branca correndo para mim.
Eu com frio.
Tanto sol e eu com frio.
Tanto frio.
Entretanto voltei: o presente impõe-se à memória e traz-me as linhas geométricas da cidade vistas da janela do comboio. Se foi Deus que fez o mundo, não criou uma única linha recta, uma só curva perfeita, ofereceu-nos o caos, e nós vamos destruindo essa aconchegante liberdade com a árida prepotência da geometria. Ou então são saudades de África.
Imagino a Gare do Oriente, onde o comboio vai parar dentro de minutos, que tantas vezes achei uma arrojada criação fitomórfica a quebrar a inorgânica monotonia urbana, e que agora antecipo como um desenho repetitivo, reduzido ao arremedo simétrico de um bosque. São saudades de África: dorme-se uma noite na desordem corajosa da mata eterna, e aprende-se a desprezar a fútil esquadria dos jardins, a domesticada ordenação da arquitectura urbana.
Quem nos vir daqui a pouco, frente a frente, eu e a enfermeira pára-quedista, à mesa de um restaurante jamais imaginará que o que nos separa não é o tampo da mesa, serão 37 anos de vida e uma guerra. A mesma guerra que fez com que as trajectórias das nossas duas vidas se encontrassem.
Há, evidentemente, alguns factores que reduzem o grau de imprevisibilidade desse nosso primeiro encontro, mas neste momento, quando o comboio já está quase parado na plataforma de embarque da Gare do Oriente, só consigo pensar que foram precisos largos séculos de história colonial e duas trajectórias erráticas, como erráticas são sempre as trajectórias dos seres humanos, para nos encontrarmos no preciso lugar onde uma mina anti-pessoal terrestre aguardava há alguns dias pela minha bota esquerda. E isso é algo que transcende o meu poder de cálculo de probabilidades.
E onde aconteceu tudo isso? Numa picada perdida do norte de Moçambique ou num lugar recôndito da minha imaginação?
Eu com frio e o sorriso cálido da enfermeira. Eu na solidão absoluta perante a Morte e um sorriso que me garantia mais do que a certeza de que o Universo era habitado. A certeza que, mesmo quando tudo parece ter descido ao mais baixo patamar da humanidade, a esperança pode ser-nos trazida por um cândido sorriso de mulher.

E o Alfa parou.
Não sei em que ano parou. Não sei em que mundo.
Vou sair por aquela porta para a plataforma de embarque com a convicção de que a realidade não me será suficiente. Mas a realidade nunca é suficiente: é para isso que há sonho, música e poesia.
Era uma vez uma guerra. Era uma vez uma enfermeira de T-shirt branca e sorriso cândido que vinha do céu, e descia de helicóptero tão suavemente como os anjos, disputando-nos à Morte. Ela chegava e a esperança de vida aumentava. Levou o Lemos, levou o Raimundo, levou-me a mim. E um dia, quando parecia que tudo o que passei na guerra se tinha desvanecido para sempre, dei por mim a desenhá-la com palavras, como personagem de num livro, palavras que trouxe a vida inteira comigo. Hoje a mulher por detrás da personagem ocupará o seu lugar aferindo a ficção pela realidade, deixará de ser uma silhueta desvanecida de uma foto antiga no heliporto de Mueda. A personagem construída a partir da fantasia literária e das memórias difusas de um velho soldado. Sairá hoje das páginas do livro para falar com o autor.
- Olá Piedade!
- Olá Manuel!




Legenda: Piedade Gouveia e Manuel Bastos reencontro
Fotos: Enviada por Manuel Bastos

Manuel Bastos


JC: Manuel, mais um brilhante capítulo desta tua série “A Enfermeira Que Vinha Do Céu”. Quem sabe não a encontraremos em breve numa livraria perto de nós ? Compilada com carinho e envolta numa bonita encadernação, pronta para ser levada, lida, apreciada, mostrada, contada e depois cuidadosamente guardada e de novo encontrada.
É um privilégio para o “nosso” Blog ir publicando e partilhando com todos os nossos Companheiros cada um destes extraordinários capítulos e é muito compensador constatar que mais uma missão tem vindo a ser cumprida.
Há muito tempo atrás, a Guerra em Moçambique que o Manuel Bastos descreveu como” o local onde apoiou pela última vez os dois pés no chão” e, por força desse trágico momento,”foi tocado pelo sorriso redentor” da enfermeira pára-quedista Piedade Gouveia, agora, com a preciosa colaboração do comandante Víctor Barata, foi dado o primeiro passo com a identificação da Piedade Gouveia até ao reencontro 37 anos depois.

Manuel, este espaço continuará ao dispor para a publicação de novos capítulos de “A Enfermeira Que Vinha Do Céu”.

Saudações Especiais

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