quarta-feira, 25 de março de 2009

VOO 876 BOM DIA MIGUEL,VENHO COMUNGAR ESTE DIA CONTIGO!



Victor Barata
"Comandante" do Blog

Esp.Melec/Inst./Av.
Vouzela



Um aniversário triste para recordar…feliz para comemorar!

Companheiro, hoje é o dia 25 de Março de 2009!
Um dia que, já algumas vezes aqui o referi, não gostar de recordar.
Um dia que seria para mim igual aos outros, não fosse o retroceder no tempo 36 anos.
Um dia 25 de Março de 1973!
Pois é, Companheiros, nesta data pelo cair da tarde, em pleno voo do Arquipélago de Bijagós, mais propriamente da Ilha de Bubaque para Bissau, vivendo a alegria de um dia “sem guerra”, sou atingido por um “míssil” que me entra pelos ouvidos dentro, disparado pelo controlador aéreo da torre da Base Aérea nº12,em Bissalanca.
“O Ten.Pilav. Pessoa foi atingido e perdemos o seu contacto”. (obviamente que não foram estas as palavras emitidas, por uma questão de segurança, mas o significado é o mesmo).
Senti o desaparecimento deste mundo, de um jovem piloto empurrado para uma guerra sem saber do seu significado, de um filho que iria deixar como sua recordação à família o luto, de um companheiro verdadeiramente exemplar em todas as suas atitudes, independentemente de serem subordinados ou superiores, enfim, o luto na família FAP era generalizado.
A noite vivida na base, foi terrível, estou convencido de que se o inimigo nos atacasse, éramos apanhados à mão.
Mas ao romper do dia 26,Deus disse ao controlador aéreo que o Miguel só tinha feito uma “asneirita”, ou seja, tinha ido dormir fora, mas não conseguiu arranjar a companhia desejada de uma bajuda(1) ,pelo contrário, quem lhe apareceu foi o Alf.Comº.Marcelino da Mata(2)!
Bom…bastante renitente em falar com este oficial, pois não era por ele que esperava, sempre aceitou a “boleia”para sair daquele local impróprio para homens como ele.
Mas até aqui o Miguel granjeou a sorte, pois caiu-lhe nos braços para o transportar para junto daqueles que ansiosamente aguardavam a sua chegada à base, a Menina EnfªPara Giselda Antunes que viria a ser, e é, a sua Dignª.MULHER!
Acabou o filme, Miguel!
Já sabes porquê?!...
Pois Companheiros, é isso mesmo, é com grande emoção que recordo o dia de hoje em que é assinalado o 36º ano em que, pela primeira vez na história da Força Aérea Portuguesa um piloto foi atingido por um míssil Strela, Ten.Pilav.Miguel Pessoa.
Gostava de estar junto a ti para compartilhar-mos uma taça de champanhe da “tal”garrafa que não abriste naquele dia.
Um abraço do teu sempre amigo
Victor Barata

Notas da responsabilidade do Editor:
(1) Mulher nova guineense
(2)Hoje Ten. Cor. Comº Refº. Militar mais condecorado da história das Forças Armadas Portuguesas


Miguel não foi em vão que deixei para hoje a publicação desta mensagem que me enviaste há alguns dias:




QUATRO MESES DE... NADA


Miguel Pessoa
Cor.Pilav. Refº. Guiné
Lisboa

Pensei seriamente em não escrever sobre este assunto. Não parece ser "politicamente correcto" e pode merecer da parte de alguns uma certa incompreensão; mas a verdade é que, embora nunca tendo gostado de dar nas vistas, nunca me eximi a mostrar as diferenças na minha maneira de ser relativamente ao que é considerado o comportamento padrão, dito "normal".
Considero-me um narrador razoável quando se trata de descrever factos palpáveis; mas é para mim uma experiência nova quando toca a descrever sentimentos, afectos e outros quejandos. Para isso existem nesta panóplia de "escrevinhadores" exímios narradores do que nos vai na alma. Na vida militar estamos habituados a relatar factos ocorridos, enumerar as razões por que eles aconteceram, propor medidas com base em racionais que justifiquem a tomada de decisão; no que se refere aos sentimentos que sentimos em relação a um determinado problema, esses não são por norma apresentados. Por isso o meu desconforto ao abordar este tema.
Tem isto a ver com a troca de correspondência que tenho tido com o editor e co-editores do blog e que, na prática, tem resultado na apresentação a todos os seus leitores do meu ponto de vista sobre este e aquele assunto, relatando factos e tentando esclarecer (de acordo com o meu ponto de vista) o porquê da posição que em cada caso acabou por ser tomada pela Força Aérea.
Analisando detalhadamente o que se tem passado nestes últimos meses, vejo que os resultados desta exposição perante tantos interlocutores (sim, que todos podem comentar o que cada um diz - a comunicação é bidireccional) terão produzido em mim resultados mais significativos que umas tantas sessões de terapia com um psicólogo ou um psiquiatra (que, verdade seja, nunca utilizei, por não achar necessário - Seria?).
Vejo hoje que, expurgados alguns fantasmas que me habitavam, subsistiam alguns traumas que eu nem sabia estarem presentes no meu subconsciente. E um deles prende-se com quatro meses da minha vida que, sendo dos mais pacíficos, relaxantes e descontraídos que vivi, deixaram em mim uma sensação de vazio que tenho ainda hoje dificuldade em preencher.
Já tive a oportunidade de referir neste blog os factos que levaram a um interregno na minha comissão na Guiné por um período de quatro meses, o tempo que passei em Lisboa a recuperar das mazelas sofridas no decorrer de uma missão naquele Teatro de Operações.
Lembro-me que, no dia em que embarquei em Bissau com destino a Lisboa, para iniciar a minha recuperação, ainda na ressaca dos acontecimentos da véspera, em que a Força Aérea tinha perdido três pilotos e três aviões(*), tive um desabafo sincero mas que os meus camaradas não mereceriam: "Desculpem lá mas, de certo modo, neste momento sinto-me satisfeito por não estar em condições de voar". Tive oportunidade de me arrepender várias vezes destas palavras, pois nem eles as mereciam, pela solidariedade que lhes devia, nem as merecia eu, que sempre assumi as minhas responsabilidades e não tenho por hábito virar a cara a nenhum desafio, por mais que isso me custe... E tive também a oportunidade para tentar redimir-me desse momento ao longo do ano que ainda passei na Guiné, depois de recuperado fisicamente. Mas nunca consegui recuperar os quatro meses que estive afastado do Teatro de Operações.
Não podemos prever o futuro, por isso não sei o que me poderia ter sucedido naquele período, se lá tivesse estado (como diria o outro, prognósticos, só no fim do jogo...). O que sei é que foi uma "traição" que o PAIGC me fez ao limpar-me estes quatro meses de Guiné - e ao mesmo tempo, uma involuntária "traição" minha por não ter podido apoiar os meus camaradas de luta, num momento tão difícil para todos nós, que levou inclusive a alterações significativas da Força Aérea no modo de fazer a guerra.
É que é nos momentos difíceis que pomos à prova as nossas maiores qualidades e que sobressaem os nossos maiores defeitos ou limitações. Embora tenha tido oportunidade de testar posteriormente as minhas capacidades e de sair de lá com a minha dignidade intacta, não pude partilhar, no verão quente de 1973, todas as agruras, apreensões e dificuldades sofridas pelo pessoal da FA naquele período difícil, bem como a satisfação do dever cumprido que todos terão sentido no dia-a-dia e a solidariedade e camaradagem que tiveram oportunidade de partilhar, que lhes permitiu afinal ultrapassar essas dificuldades e atingir os objectivos propostos.
Por isso, lamentando não ter podido estar presente, daqui lhes tiro o meu chapéu, por terem conseguido, pese embora todos os constrangimentos, cumprir a sua missão nesse verão quente de 1973.

Miguel Pessoa

(*) - Eu embarquei para Lisboa em 7 de Abril de 1973, os acontecimentos a que me refiro ocorreram em 6 de Abril. (3)


Nota da responsabilidade do Editor:


(3) No dia 6 de Abril registou-se a perda de 1 avião DO-27 e a morte do piloto Furriel Baltazar da Silva, a perda de 1 avião T-6 e a morte do piloto Major Mantovani e 1 avião DO-27 e o piloto Furriel António Carvalho Ferreira nunca mais foram vistos após descolar de Guidaje.
Fonte: Post 770 “A História do Strella na Guiné”, ponto 5.

Post relacionados: 834, 812, 770, 753.
JC:Bonito texto, intimista, sentido, para lá dos factos, a consequência dos mesmos e o impacto no ser humano ao nível emocional..Como uma frase ou um pequeno lapso de tempo podem marcar e assim perdurar ao fim de 36 anos.A "traição" que o PAIGC te fez e a que sentes teres involuntariamente feito aos teus camaradas, como referes no teu texto, seguramente Miguel Pessoa que lhes pagaste com juros ao teres regressado depois de ferido em combate e continuado as tuas missões nos céus da Guiné."