sábado, 20 de setembro de 2008

OPERAÇÃO NÓ GÓRDIO II.


450-António Dâmaso
SargºMor Paraquedista Guiné

Odemira





Moçambique
Distrito de Cabo Delgado



A minha companhia fazia parte do Agrupamento de Intervenção B:
1.ª CCP do BCP31; 1.ª CCP do BCP 32; 2.ª CCP do BCP 32; C. Caç. 2468; C. Caç- 2665;Grupo Especial 205; 2 Pelotões de Morteiros 81 mm; 1 Destacamento de Engenharia; 1 Bateria de Artilharia de 88 mm.
À minha companhia, coube de inicio a missão de fazer a segurança à Engenharia, Morteiros e Artilharia, que a determinado ponto da picada de Nangololo para Miteda, saiu para a direita, abrindo picada nova, levamos dois dias a chegar ao objectivo, já na denominada Base Beira, se memória não me falha, quando estávamos a montar o Acampamento, caíram algumas morteiradas, tendo uma delas rebentado numa árvore e provocado três feridos ligeiros.
Depois, foi mais do mesmo, heli-assaltos a Tabancas abandonadas na hora, Quadricula, estive um mês sem mudar de roupa e tomar banho, o camuflado mais parecia um oleado, tive matacanhas nas unhas dos pés, assisti a duas situações me marcaram pela negativa, por serem melindrosas nunca as contei, mas entendo que estas coisas devem ser contadas para se saber que as guerras, transformam seres humanos em monstros, e na conveniência de as evitar a todo o custo:
Um dia íamos em patrulhamento, tivemos um contacto com o in houve tiroteio, apanharam-se algumas armas e fizeram-se prisioneiros, entre estes, uma “guerrilheira”, mãos atadas atrás das costas, presos com uma corda atada ao pescoço para não haver o risco de querem fugir.
Continuamos na patrulha e à noite pernoitamos no mato, tropa distribuída em círculo com os prisioneiros no meio guardados por um militar, noite dentro quando quase toda a gente dormia, digo quase, porque estava acordado, em dado momento vejo uma cena que nem queria acreditar no que estava ver, um alferes aproximou-se dos prisioneiros, disse ao militar para se virar para o outro lado, e abusou ali mesmo da mulher, dando azo ao seu instinto animalesco, o indivíduo não era da minha Unidade, aquilo revoltou-me, mas senti-me impotente para por termo à situação, porque não tinha sido pessoal da minha Companhia que os tinha aprisionado, nem estavam à nossa guarda, eu estava naquele lugar naquele momento, por em tempos passados tentar defender um mais fraco, se fosse fazer ondas quem se tramava era eu. Naquele tempo dizia-se abusou, serviu-se, hoje tem outro nome, violação e é crime.
Noutro dia em mais um patrulhamento, em dado momento houve ordem de sair imediatamente da picada e em silêncio emboscar, repentinamente rebenta o tiroteio mas os tiros saíram só das nossas armas, ouviu-se uma voz de comando de alto ao fogo, quando vi que os pseudo-guerrilheiros eram mulheres e crianças, senti vómitos e só não vomitei porque não tinha nada no estômago. Alguém teve o bom senso de mandar evacuar os feridos, também ouvi desabafos de desculpas, “estes filhos da p… dos turras têm a mania de mandar as mulheres à frente” depois disto, senti que os valores que me tinham sido ensinados e que defendia, não se identificavam com este tipo de guerra, não tinha feito fogo mas para mim, foi como se o tivesse feito.
Lá fui aguentando conforme podia, sentia-me mais uma vítima do sistema, o sistema tem as costas largas e é o bode expiatório dos erros dos humanos, até que adoeci com malária e fui evacuado para Moeda.
Foi uma evacuação de “luxo”, via Berliet, lá disse mentalmente: Seja o que Deus quiser, porque viajar de Berliet, era pior que andar no mato aos tiros.
Quando entramos na picada Nangololo Miteda lá estava o local onde tinham ido pelos ares duas viaturas blindadas, por acção de fornilhos, ainda se viam pedaços de camuflados presos nas árvores, nessa noite pernoitamos em Miteda, só no outro dia chegamos a Moeda.
Em Moeda existia um chamado Hospital de Campanha onde estive internado dois dias e depois fui evacuado para Nacala, via Nampula em 08AGO70 e fiquei convalescente no domicílio por 15 dias, tendo acabado por ali a minha guerra em Moçambique.
Comecei andar na Consulta Externa no Hospital de Nampula, onde baixei por duas vezes em 30OUT70 fui de novo transferido para a CMI, tinha por missão fazer as escalas de serviço da Companhia e inventariação de todo o material, à carga, com a colaboração dos companheiros Especialistas de Abastecimentos e continuei a andar em consultas até Janeiro.
Em 08FEV71 fui transferido em diligência para o COMRA 3 Nampula, onde entre outras tarefas, fiz segurança em voo aos aviões bimotores turbo-helice que faziam o transporte de pessoal entre as localidades de Porto Amélia, Marrupa, Mocimboa da Praia, etc. Estava habituado a poços de ar mas um dia em que fui a Marrupa, apanhámos um temporal com trovoada, além dos poços de ar, o avião tremia e abanava todo, foi mais uma experiência.
Em 09MAR71 regressei novamente a Nacala onde permaneci até 25JUN71 data que marchei para o COMRA 3 Lourenço Marques para me ser conferido o itinerário para a Metrópole, estive dois dias em Lourenço Marques, embarquei num Skaimaster carregado de helis para a revisão nas OGMA, o avião esteve avariado em Luanda 3 ou 4 dias, só cheguei a Tancos no dia 05JUL71.
Em resumo, em Moçambique (Nacala), além da porcaria da guerra e da doença, havia coisas boas como bom peixe fresco, camarão bom e barato, lagosta a 30 paus o Kg, as boas cervejas Laurentina e 2M, as praias de Fernão Veloso e na Baia de Nacala, onde eu um dia andava entretido a admirar os peixinhos e depois tive de ir só com os calções e descalço para casa, por me terem roubado tudo.

António Dâmaso